guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la
Antonio Cicero, "Guardar"

Voltei. Abri a gaveta que havia se tornado um armário. Desenrolei a frota de barquinhos de papel. Decidi transcrever tudo, à caneta. Mas aqueles papéis avulsos não tinham rota. Davam voltas, isso sim. No umbigo, disse um supereu. Não senhor. Suprimi essa parte do texto para não levar outra bronca de Edith e ouvir pela milésima vez que eu não era uma romancista de verdade. De verdade, ela dizia inclinando um pouco os óculos para me fitar, enfática.
Voltando: eu comecei assim, me terminando. Tirei o figurino de personagem - que sou - e me pus a narrar. Era isso sair da gaveta: me pôr nua, me expor à diagnóstico.
Está tudo aqui transcrito, neste rolo de papel, à caneta. É o retrato do artista quando moça. É uma página inteira e só. É um emaranhado de fios. Romance não é mais novelo, tento explicar a Edith. Eles não permitirão, ela diz, em tom de sentença, não te deixarão passar. Eles quem?
síndrome da gaveta

Escolhi a caneta para começar. Já não era mais tempo de grafite, lápis de olho, giz de cera, borrão. Era tempo do definitivo. O que permaneceria sem meu corpo, sem meu punho. A voz, à caneta. Tive medo dessa eternidade. Esses anos todos tive medo de sair do armário e dizer: sou eu a escritora, a atriz que encena textos em tempo real, a narradora de carderninhos, marinheira só em blocos de carnaval. Mas por que explicar? Quem estaria ouvindo? Redatores insones numa madrugada googlística de trabalho? É assim: pergunto, pergunto, nunca termino. Ele disse: é initerrupto. Initerrupta, parei, abrupta.
[evelope azul exato]

Luísa,

Eu sei que eles vão me pegar lá fora. Você deve estar se perguntando quem? Eu digo: os cães. Mesmo assim, publicarei.
Envio neste envelope tudo reunido em espiral. Mandei uma cópia também pra Chará (por onde anda ele?), pro Ney, pro Eugene (será que ele lembra de uma aluna silenciosa como eu?), para Marina, para Raimundo, Eduardo, e o Raul, é claro, e também a Bia, a Lídia e a Anaís.
Leia como quiser. Abra ao acaso, de um lado ou de outro, comece terminando, termine começando... de todo jeito, estarei eu aqui, em pedaços, desaparecida. Não sei quando volto, se volto um dia. Mas sei que aqui, permaneço. Uma espécie de sobrevida, sabe como é?

Não esqueça de se anotar aqui. Desenhe junto comigo.

É doce morrer no mar, minha amiga. É Caymmi que canto enquanto escrevo.

Vai assim esse bilhete meio suicida. Já te disse que acho os surfistas de uma coragem suicida? Então: é tempo de surfar ao invés de navegar.

Deixa eu ir senão não termino nunca.

Um beijo,

Luíza
morreu
o eu
morreu
luíza
breu
(cole)
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o romance está solto nas páginas do bloco. favor recortar e montar numa possível encenação em palco imaginário.
movimento do bloco sem corda
Edith se sentou e fez um monte de perguntas sobre o que para ela estava muito confuso. Cadê a correspondência completa? Expliquei que eram só duas cartas, a primeira e a última. Ela disse mas assim não pode. Quis cortar tudo de vísceras e todas, todas as miudezas. Quis me dar a receita certa, olhe, é assim, pescoço, fígado, estômago. Ai, ai, ai, nunca dá certo isso. Edith estava velha e reclamona. Nunca dá certo poesia em prosa. Você vai me dar muito trabalho, Luíza. Edith, não cospe no prato que comeu. Deixa eu te explicar que.
a escritora quer dar um laço. mas não encontra a ponta.
ela está emaranhada no fio condutor.
elos
amar elos
linha a linha, tricoto a colcha de recortes. ___________________________________________________________ {estou por um fio.}
A escritora é Ela. A escritora é personagem.
é preciso terminar o livro
impreciso é terminar-me.
t_e_r__m_i_n_a_r__


comer cabidela
é devorar-me.
esperei o tempo da gaveta
(guisando)

li, reli, releio; me leio.
digo, não digo; me edito.

eu preciso sair daqui.
daqui, da gaveta-armário onde me penduro.


não sou profissional
sou ficcional
Chama a Edith pra mesa
que a Cabidela tá pronta.
post-it

escrevo para lembrar
leio de um lado.
escrevo de outro.
(recorte)
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é aqui o começo
Fiz uma asa feito laço, que era a minha metáfora-mapa da cidade-irmã. Dobrei, bem dobrado, enrolei numa linha vermelha, feito embrulho de mercearia, e dei a ele para sua primeira visita à capital. Era um mapa de mim, entendi depois . Eu havia me inscrito, eu havia me dado a ele naquela folha de papel. Pois Ela estava escrita em meu corpo e eu quis me grafar no corpo dEla para mostrar a ele quem era, quem fui.
Dele e DEla fiz laços, fiz espiralaços.

Para Thiago Costa



CADERNO
Mapa irregular do nosso descontínuo interior, com os fragmentos, vozes, reflexões, imagens de lirismo e revolta - inclusive amostras de cerâmica verbal - dos muitos personagens imprecisos que o animam. Afloramento de íntimos arquepélagos...

Aníbal Machado, Cadernos de João




Fechei os olhos e fiz um risco ao acaso. Era o meu desenho preferido na escola. Com o lápis negro eu deixava correr livre a mão para fazer bordas. Em seguida, preencher os espaços em branco com lápis de cor como bem quisesse. Sempre gostei deste mais do que todos. E foi assim, num movimento circular, que me cartografei nEla e Ela se cartografou em mim. Meio a roda da saia da cidade-mãe, meio a partitura dos passos da filha, mexe, remexe, rodopia.
Fechei os olhos e me risquei ao acaso. Das voltas, deu barriga.






eu, fragmento.
poesia
eu não te escrevo
eu te
vivo
e viva nós!

Cacaso, Na corda bamba

ficção biográfica. pode ser biografia ficcional também, ponha aí, neste quadradinho. o que separa vida vivida de vida narrada? essa linha onde me equilibro enquanto falo. não, não me cobre categorias. me deixo ser a irracionalista que sou: o que eu escrevo nunca foi linear nem gramaticalmente correto. me criei nessa confusão de bloco, na literatura de e-mail, no diário de moça. eu escrevo bloquinhos. eu sou escritora. eu sou uma escritora. eu sou uma escritora de bloquinhos.
Para Carolina Fonseca
Volto à janela. Morava no bloco.
O fim se aproxima, vejo. Um novo começo se faz.
Os lados se aproximam, como se fossem dar um laço.

Volto ao passado.
Não salvo nada.
Confio na máquina.

Escrevi um livro, vejo. Escrevi foi vida.
Muita coisa coube no cabide.
Me despi inteira e ainda não caibo toda.

Daqui o bloco é líquido
O blogue escorre e evapora feito rio.

O blogue impõe outra ordem,
A nova ordem.

Ah
Eu quero é botar meu bloco na rua.
iromance


i- (prefixo)
negação, movimento para dentro.


-romance (raíz)
1 - livro que conta uma história.
2 -gênero da literatura.
3 - narrativa em prosa.
tem de ter tem de ter tem de ter tem um tanque de oxigênio qual que for para varar o breu sobresi.
waly salomão - relevo 3, teste sonoro.


time machine. o texto tem um pouco deste tom: time machine. fico tentando advinhá-lo antes dele vir. pois é assim: o texto já está pronto e chega pra mim, antes, como presságio. sou eu a cartomante. sou eu quem leio, lanço, escrevo cartas. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ não acerto a previsão. a pré-visão é um quebra-cabeças.___________________________________________________________________________________________________________________________________________________ escrevo no escuro / me entorno nas linhas / não posso me ler. ___________________________________________________/ a escola. a escola vai ser derrubada. naquele dia de chuva eu olhei pra baixo e avistei minha primeira escola de cima. tinha ido morar justamente de frente ao passado. ________________________________ a volta ao passado. a volta à cidade-mãe. a volta. ____________________________________________________________ saí da casa da mãe. mudei Tarsila do lugar. _________________ Body & Soul. só a antropofagia nos une, me disse, sussuro e profético, o bigode de João. ele me disse bem baixinho: socialmente. economicamente. filosoficamente. [

] o silêncio é a maior das intimidades, disse a ele sem muito pensar; sem saber que naquilo residia toda a verdade sobre nós. ____________________________________________________________________________________________________________ caminho pelo texto. peça por peça. o desenho, a escola, o reconhecimento. a mãe. a raiz e o grão. _____________________________ tento encaixar, fazer caber. deixo o texto transpirar. _____________________________ Brazil Body & Soul. tem um yes entre corpo e alma. e eu virei a negra de peito de fora. peitos para dar de mamar. ele é esse moço fino que atravessa meu corpo. os pés inchados de tanto dançar. Tem um sim entre mim e ele. é o que diz Tarsila, pregada na parede do quarto, do nosso quarto._____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ respire, ele diz. respire, ele não para de dizer. inspire, expire. respire para não morrer.
para nascer de novo

é preciso morrer
a casa, o útero.
eu ainda ele. ele ainda eu. só que do lado de fora, que é o de dentro.
estou no útero, entendi. e preciso ou quero nascer de novo.

não.
nasço de novo.
quem será eu?
soul
sou sol
ele é a árvore
que me ensina a plantar.
plantar um ipê.
roxo.






o livro é a máquina do tempo.
O guri é uma página em branco.



















e eu risco. tu riscas. ele risca. todo o mundo risca.





























o amor. na chegada, o amor. algo novo habitava a casa. o amor. dos tempos grávidos, nascera o grave. o amor que grita ao mesmo tempo inaudível podendo quase doer. o que é isso, perguntei ouvindo o silêncio que dizia aquele tempo recém-nascido. grave é existir, ouvi de algum lugar. de mim mesma. e eu havia parido um novo ser, um existir. era muito grande aquele pequeno, era a imensidão toda reunida... e estava ali, respirando, sendo, e mais: permanecendo. gerundiando, estava. dor, senti. dor de amar aquele ser, já que dor de amar o existir, que é grave, imenso, esmagador. estava condenada a amá-lo para sempre. e desejava que nada no mundo fizesse sentir dor o amor, essa dor de ser tão.
Novamente
reunida
numa pessoa só.

Só que
agora
acompanhada.
Abril

"longe de mim / solto no ar / dentro do amor / / livre para navegar"

(por arnaldo antunes)


Agora o tempo é real.
Lixo é materia orgânica.
Agora comida sai do peito.
Agora que era lençol, hoje é esteira.

Agora um novo tempo, abril.

Umbigo com umbigo, pele sob pele
amamento, me alimento, faço crescer o presente.

Eu, longe do velho mim.
Tu, ecoando em ti.
Nós, dentro de nós.

O novo tempo abriu.
Abrimos os braços
e pusemos o novo no colo.

Visitas, marmitas.
Falhas, folhas, filhos.
Viva!
Viva é a casa. o corpo de baile, se dança.
Vivo é o menino no peito.
Vivo o.

Agora o tempo é novo, abril.
Agora o tempo é menino.

É lá

Cena 8

Acordara ultimamente mais cedo do que ele, do que de costume. Foi para cozinha cumprir seus deveres nutricionais, pôs Arnaldo nos ouvidos e não sei exatamente porquê algo a desautomatizou e foi capaz de olhar a colher que mexia o chá e reconhecer todo o resto espalhado cômodo adentro notando o passado, nos restos da casa otrora morta, que estava do lado de fora. Conseguira finalmente abrir as caixas, mas elas não deram sentido ao enredo. Naquele instante só a trilha sonora era plena de significado.
Ela, na cozinha. Ele, no quarto. O menino, na barriga. E embora presente ali, ela pensava neste exato instante de música, chá e autoanálise, que pouca coisa coube nas caixas e que quase nada restara de si. E que parasse já de acumular coisas, chega de guardar souvenirs, bloquinhos, bibelôs. Ele dizia: repare como tudo dança. Nada estaria fixo num casa habitada por marinheiros. Tudo era provisório, aqueles talheres poderiam ser cerrados em caixas logo mais, pensou, mas, não, havia algo de errado neste discurso, a interrompo. Pois dentro dela cabia justamente o definitivo.
Assumo a direção, repito a música e digo: repare se não é aqui o amor. A vida ali, muda, se via sobressalente ao redor daquela colher. Ouça e diga se não foi esse o seu desejo. O amor, escrevo rude nas paredes da cozinha para não correr o risco de ser incompreendia por sua miopia, não é aqui o amor?
Ela olhou fundo nos meus olhos, estática e surpresa pela minha chegada tão cedo, e já havia tempo que eu não a narrava nada, e após alguns minutos de silêncio, me disse: eu sai do armário, não foi? E agora é hora de sair do ar e pôr os pés no tablado, em terra firme, confirmei.
Tinha sido naquele velho abril a primeira medida drástica que desencadeou todo o resto. Voltara à Brasília e deixara lá os cachos. Raspou o passado da cabeça, depois de o ter encontrado todo ele escrito na parede do quarto que não mais me pertencia. Confundo os verbos. Confundo as vozes. Ela sou eu. E eu sou ela.
Sei que depois de se ver inscrita, tão exposta, e ao mesmo tempo tão resumida na parede de um quarto desabitado, depois disso, de voltar ao ponto de partida para dar um ponto final, Luíza começou a arrancar as folhas do carderninho e fazer barquinhos de papel.
No novo começo, quis reescrever as páginas que faltavam, mas estou condenada aos papéis avulsos.
"Não me lembro mais onde foi o começo
cabe
foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo.

cabidela
Tudo estava ali, ou devia estar,
nela.
como no espaço temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas de piano.
cabe
Escrevi procurando com muita atenção o que se estava se organizando em mim
e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber.
nela
Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender,
eu estivesse apressando antes da hora um sentido.

um volume espesso:
Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse,
e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer.


cabeça tronco membros
Cada vez mais acho que tudo é uma questão de amor.

a espera
(...)
Eu interrompia uma frase no capítulo 10,
digamos,
para escrever o que era o capítulo 2,
por sua vez interrompido durante meses
porque escrevia o capítulo 18.

Esta paciência eu tive, e com ela aprendia: a de suportar, sem nenhuma promessa, a desordem.

Mas também é verdade que a ordem constrange.

em baralho
Como sempre, a dificuldade maior era a da espera.
muito
(Estou me sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho.

tempo
E eu que pensava que estava morrendo, responderia a mulher.
nascerá
A alma deformada, crescendo, se avolumando,

dentro dela.
sem nem ao menos se saber que aquilo é espera." (Clarice Lispector)

cabe
Resgatou uma dúzia de caixas, mas não restara nem poeira de si nelas.
Prólogo: Escolheu o destino.
1º ato: Pagou por cargas e mudanças.
2º ato: Desesperou-se.
3º ato: Matou a casa em 12 caixas.
Epílogo: Pôs-se a a guardar.








































Me apaixonei pela página em branco.
Fiquei um tempo vivendo sem bloquinho, disse a ela. Desde que o conheci, aqui, na praça dos 15 mistérios, vivi um tempo sem narração, sem apontamentos. Foi aqui que o conheci, foi tão mágico, você precisava saber. Foi o dia que mudou a minha vida. Louco isso, né?! Um dia que muda tudo. Tive outros desses dias, mas nenhum tão nitidamente o dia em que mudou tudo. Que difícil quando a vida nos rouba a página e escreve ela mesma a história, disse, meio narrando, aos olhos verdes e cândidos e atentos. E agora eu sinto o tempo de outra forma. É como se meu filho fosse uma projeção do tempo. Ele que existirá independente de mim, permanecerá no curso da história mesmo se eu não mais existir... me imortalizarei também na sua existência posto que é um pedaço de mim? Há algo de involuntário e inevitável nisso tudo. É difícil não sermos os autores, somos obcecados em sermos autores, disse. Sei que um dia ele vai me ler. Me compreenderá? Sei que um dia descobrirá tudo o que fui antes de lhe doar um pedaço de mim.
A cartomante

Luíza Breu decidiu voltar à cartomante. Tinha encontrado nos arquivos uma folha de caderno com as anotações de Luzia. Luzia era a cartomante e voltava à história com seus escritos de próprio punho. Lhe vejo de mãos dadas com alguém, com uma criança no colo e de frente pro mar, escreveu no que denominou de “o amanhã de Luíza”. Já fazia dois anos daquele encontro e ela tinha acertado quase tudo.
Breu teve muito medo de voltar, afinal de contas, o que prometeria, o que diria mais do destino que chegara e a assustara por tanto tempo? O que sabia já era suficientemente grande. Mas reencontrar-se com Luzia parecia uma chave para desenrolar os mistérios da narrativa, já que ela havia reaparecido sem que marcasse hora ou local. Veio pelo acaso. E reembaralhar as cartas seria incluir mais fios no tear da narrativa, dar continuidade àquele jogo sem fim de narrar a vida, este vício incurável da personagem.
Luíza fora ao seu encontro, rememorando cada detalhe da última e única vez que estivera ali. Luzia, muito branca, com os pêlos e olhos muito claros, a recebeu com um torço na cabeça muito vermelho e um óculos desses de armação invertida, sorridente, embora contida e solene. Luíza percebera de imediato que a casa da cartomante era agora outra e que tudo aparentava os cenários das revistas de decoração. Não era propriamente o cenário que povoava o imaginário de Breu.
A cartomante levou-a para a salinha de consultas, que agora era tão somente luz branca e tecidos lilás, e começou interrogando-a: por que voltou? Porque perdi o medo, disse Luíza. O medo do futuro. Não é isso que as cartas dizem, concluiu poucos minutos depois. E o tarô não mente nunca, filha, o tarô é a única coisa que eu acredito.










(Augusto de Campos)
I

Tem umas coisas que saem redondas, outras não. Tem textos que sobram, que deixam um fio solto aqui ou ali, tem coisa que a gente fala e não diz, quis dizer a ele. Quis mostrar que o começo não tinha duas pontas, que era apenas repetido e que era assim mesmo, se derramava e às vezes sobrava, deixando texto demais pendurado no varal.

- Por que você está chorando?
- Porque nada será como antes. Nunca mais. Pra sempre agora.
- E isso é triste?
- Só sei que me faz chorar. Capto das horas esse sentimento, esse gosto de última vez, sabe, e fico de nuvem cheia.
-
-
- Por que você está chorando?
- Porque estou ficando mais velha. Porque o tempo me atravessa. Por isso.
-
-
- Por que você está chovendo?
- Porque está nublado, não vê?
- Não.
-
-
- ...

A outra se viu nos olhos da protagonista. E a dona protagonista avistou a senhora destino, que havia sentado ao seu lado naquele dia de acasos e nunca mais levantado, embora não percebesse. E ao mesmo tempo foi como se o passado a tivesse levado ao novo tempo, pois foram as 5 companheiras de infância que lhe conduziram até ali. E depois daquele dia Luíza se fez drasticamente outra, o que a levou novamente para longe das outras 4. Ela, que era a 1ª pessoa, afinou-se com a 2ª - que lhe soava por vezes estranhíssima no modo de conjugar a vida - para experienciar agora, naquele ponto da história, uma 3ª pessoa. Quanta coisa tinha passado e aquilo tudo tinha cara de começo, pois era ainda a primeira leva de texto da nova história, do novo desafio de viver sem rascunhos e do que nunca caberia apenas num livro só, mas que cabia, unicamente, naquele instante, dentro de si.
Luíza estava prenha. De um novo tempo, estava prenha. Quis andar devagar, mas já tinha acelerado o tempo e foi ele quem a capturou para a temporada de esperas, esta mesma de semanas lunares de gestação, quando se prepara outra pessoa e o tempo parece parar para poder assistir, incrivelmente, a olhos quase nus, a germinação, a transformação de semente em broto.
A prenhidão agoniou-lhe. Desesperou-lhe. Julgou-se numa rota torta, pois partia de cálculos e aquele rumo era incerto e misterioso por demais. Na tentativa cega de mover-se, lançou-se às tempestades, navegando sem sair do lugar. Foram muitos náufragos até perceber, nalgum dia de bonança, que o velho marinheiro, como nenhum outro que passou, continuava ali, por vezes molhado de suas nuvens cheias, outras tão seco que capaz de aquietá-la, quase sempre silencioso e ameno enrolando um cigarro de palha no canto do convés, mas com os olhos muito vivos, o corpo todo presente. Neste dia, quando percebeu, soube que era ele a segunda pessoa e quis construir uma canoa para a chegada do terceiro.
Então Luíza assobiou suas memórias de mar, relembrando histórias, que feito ondas não voltam mais, deixando no mar as velhas saudades, frases, promessas. Assobiou as lembranças soprando-as para longe, e pôs-se então a preparar a terra para construir uma casa. Por fim, entrelaçou as mãos às do outro, rodopiou num passo mudo feito pirueta e, sem juras, cálculos e planos, abriu a porta de uma nova vida que estava prestes a nascer.
II

[fuga número dois ou dramaturgia em trânsito]

- Brigado.
- Pelo o que?
- Por isso.
- Brigada também.
- Vamos sair?
- Como é que ‘cê quer eu saia com esse homem nu na minha cama?
- Vai viver de fazer amor?
- E samba.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- É feriado?
- Nacional!
- Vamos sair?
- Quero preguiça.
- Eu quero isso, me dá?
- Dô.
- Deixa eu te mostrar meus trampos?
- Mostra.
- Essa aqui eu trouxe dos Andes.
- Aquela preta é a mais preciosa.
- Olha esse. Isso aqui é cobre.
- Cê é um artista.
- Que é isso?
- Minha tese. Olha aí.
- Tem figura?
- Quase nada.
- Eu gosto é de figuras.
- Não tem problema.
- Quer tequila?
- Um trago.
- Boa noite.
- Boa noite.
- Toma esse plástico.
- Só uma, vai.
- Não pode.
- Quero te sentir.
- Tá.
- Sentiu?
- Senti.
- Senti.
- Baby?
- Hum.
- Bora voltar?
- Pra casa?
- Pro ninho.
- Bom acordar assim, com cafuné!
- Bom dia.
- Bom dia.
- Tenho que trabalhar.
- Demora de atravessar essa baía.
- Que horas eu volto?
- Logo.
- Fica aqui?
- Até domingo.
- Na minha cama?
- Quando você for, eu vou.

- Alô?
- Oi.
- De boa?
- Não gosto de samba.
- Nos vemos pelo mundo, então.
- Tchau.
- Beijo.
- Tchau.

- Alô?
- Oi, sou eu! Chego aí oito da noite e vou direto pro chá de bebê.


/BR/

- Foi um bom momento.
- Tava precisando disso, né?
- Pô!
- De repente vocês dois.
- Ele nem deve ter mais memória, Paco.
- Como é estar de volta?
- O passado é uma roupa que não nos serve mais.
- Te veste e vamos dançar.
- Me empresta essa camisa?
- Posso cortar?
- Sonhei com a voz dele dizendo “Alô, meu amor. Tô aqui.”
- Tu quase não dorme.
- São essas cigarras.
- É a chuva, minha amiga.
- Coisas de abril.

- Alô?
- Alô! Quem é?
- Sou eu. Liguei pra dizer da saudade.
- Engraçado.
- É verdade.
- Não, é que sonhei contigo hoje.
- Então estamos sintonizados.
- Tá onde?
- Na rodoviária.
- Hum.
- Como tá aí?
- Uma loucura. Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas. E você?
- Ah, eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco.
- Sei.
- Saudade. Você não acredita, mas saudade.
- Sinto saudade também.
- Me dá teu e-mail?
- Pega esse.

- Bjo. Bjo. Bjo.

- Durmi não.
- Drume, neguinha.

- Ele chegou tarde um dia, Paco, e só sosseguei a espera quando senti o peso do braço dele numa concha.
- É o toque, minha amiga.
- Cata minha cabeça?
- Ah, depois.
- Vou raspar o cabelo.
- Sério?
- Meu Deus do céu.
- Vai mudar o que já está mudo.
- Quero nascer de novo.
- Vai ficar parecida com esse bebê.
- Como é perversa a juventude do meu coração.
- Mais que as paixões, os seus motivos. Não era isso que tinha escrito?
- Em azul, eu me lembro.
- Vamo andar um pouco?
- Consigo não.
- Que prazer mais egoísta!
- Vai dar tudo certo, né?
- Claro, amiga.
- Quero que acabe logo. Já é hora de ir.

- Boa tarde. Obrigada pela presença de todos, poucos.

- Um brinde!
- À Mestre!
- Mestre de obras.

- Vasco, a saideira é por conta da casa?

- Tchau, meus queridos. Agora vôo.

/BR/


- Volto da, crase no a. Volte de, crase pra quê?
- Silêncio.
- Cadê sua voz no eco vazio deste quarto?
- Silêncio.
- Cadê sua voz perdida nestes caracteres em negrito?
- Silêncio.
- O que afinal de contas você quer me dizer com esses excessivos “rs” e “bjos”?
- Rsrsrsrsrs.



- Aquilo que ele não diz. Porque não sabe.

- Alô? Tá ocupada? Ah, ele disse que não era sincero com ele mesmo. Disse que quer ombro, que sente falta de alguém na cama, que não gosta do quarto, mas que era um mal-estar momentâneo. Transitório, ele disse. Disse que me adorava várias vezes, mas disse também que aquelas palavras eram porque estava embriagado de algo que os homens grandes bebem e que estava cansado e que iria sair correndo como sempre fez. Me ligou, me chamou de amiga e me deu um monte de peças sem pé nem cabeça. Mentiu, desmentiu, voltou atrás. Porque falou também que só não era sincero com ele. .... é .... é ... também acho.

- Ela também estava perdida e por isso se agarrava a mim também.

- Alô? Boa tarde. Tem ônibus pra Tocantins?

- Cresça e desapareça.

- Me diz o que tu quer?
- Silêncio.
- Silêncio.

- E se?
- Decide.
- Silêncio.







- Lígia, responde, Lígia. Ligiá? Taí? Lígia, não deixa de ser minha amiga? Lígia, eu volto. Agosto, Lígia. Agosto eu volto. Ligiá? Eu jamais poderia casar com você, Ligiá! Lígia, te mereço não, Lígia. Mas, Lígia, não some? Breu, é sério, me liga mais tarde?








- Chega de saudade. Chega de saudade. Chega.
Para Mariana Moura
III

Luíza Breu aterrissou. Não em qualquer lugar: aterrou diretamente em sua terra natal, sem escalas. Voltou outra, naturalmente. E mesmo antes já era muito diversa dos hábitos, sotaques e comportamentos que povoavam a velha cidade. Ficou dias num estado de pergunta sem resposta, sem tempo nem espaço, absolutamente sonâmbula do que fazia ali. Afinal de contas, tinha deixado a casa para trás há muito e naquele ponto da história não saberia dizer nem quem era nem que fazia ali. Era tudo novo e velho em tempo real.
Até que os co-autores chegaram. Ajudariam eles a escrever suas primeiras páginas, a tirar Luíza daquele ostracismo de página em branco, daquele instante imprensado entre o que havia sido e o que o será? Era o esperado.
Reencontrou-se primeiro com Luiz@. Enquanto o esperava no aeroporto, Luíza lembrava-se da última coisa que ele havia escrito em sua parede. Ele desenhou AR RISCAR, escrito junto, mas separando prefixo de verbo por cores. Ela pensava agora como isso o definia – ele era o risco – mas também como era o prenúncio de seu próprio movimento anterior, a dança de riscar o ar e o risco feito, impossível de remoção. Ele chegou e a levou diretamente pra rua, de onde não saiu durante toda sua estadia. Embriagaram-se um do outro para matar a saudade. E Luiz@ deu um empurrão nos dias, um grande giro na roleta russa para que tudo entrasse em movimento e para que pudessem tocar um ao outro assim, arriscando-se pelos nomes desconhecidos das ruas, nomeando tudo ao acaso e escrevendo diálogos pra contar o que tanto aconteceu entre o dia que se despediram no apartamento de Luíza, que havia se tornado um pouco do seu também, como quase tudo que virava “nosso”, posto que Luíza e Luiz@ eram quase os mesmos em safras de escrita como aquela. Um detalhe os faziam outros, embora como par fossem um duplo.
Luiz@ levava a outra a atirar-se pela vida numa avidez doida de dezoito anos, que era impossível de registro, nada além de frases soltas num bloquinho, pois ali vida escrita era vida vivida. Escrever era ar riscar-se. Foi assim que, numa faixa de 24hrs de uma quase-morte nas ondas até a vista secreta de um mar, descoberto no meio da avenida no primeiro dia de carnaval, ela vestida de bailarina, e ele maquiado de furacão doismil, saíram fantasiados para um banho de chuva provocando a todos com gritos de “quem tem medo de chuva?”. Amanhecia e eles andariam toda a beira-mar tropeçando em serpentinas e intervalos de risada até reencontrarem Luísa, no apartamento, de camisola, pronta para também escrever-se.
Luísa tinha um dom de ouvido editor, pensava Breu, pois narrar-te histórias era ouvi-las de volta, parágrafo por parágrafo, pois Luísa sempre entendia tudo, tim tim por tim tim. Era como se ela desse sentindo à narrativa, escrevendo junto, de ouvido, os relatos, encontrando neles arremates, bordões, títulos e frases feitas. Talvez porque fosse atriz e soubesse como ninguém encenar o texto de outro – além do seu próprio – e jogar com máscaras e performances e dramaturgias. Foi por isso que, no reencontro, Luíza e Luiz@ não hesitaram em contar tudo a ela ali mesmo, de pé, cheirando a suor, urina e álcool, porque Luísa ficaria em pé para ouvir tudo e nomear aquele cheiro de carnaval. E responderia à cena com um riso farto e devolveria ordem, cadência e pauta para a enxurrada de verbo que trouxeram as duas em sua chegada.
Seriam 3 novamente dali em diante. E começaram a fazer teatro por muitos dias de festa. Foram centenas de micronarrativas e frases soltas na folia que é impossível contar-lhes tudo. O que se sabe é que era tudo mágica e que em quase toda cena tinha alguém de cartola dirigindo secretamente a sucessão infinita de curtas e contos. Breu só se lembra que a mais significativa das horas foi quando sua fitinha do Bonfim, que Luiz@ a dera anos atrás, rompera no meio de um trio elétrico. Nunca uma fitinha do Bonfim sua tinha se partido e ela não se lembrava mais o que havia pedido nos três nós da tira. Mas sabia que a crença popular era de que a fita precisava cair para que os desejos se realizassem. Fizeram o ritual de jogar ao mar o fio. Feito isso, deu as costas e continuou, pois o destino continuava desconhecido e não saberia jamais quais seriam os seus três desejos de um passado tão longínquo. Afinal era outra, já disse, e o que mais cantara, ou melhor, berrara pelas ruas de carnaval foi “eu sou, eu sou, eu sou amor, da cabeça aos pés”. Foi a única coisa que soube e veementemente afirmou ali, na passagem, na avenida.
E aquele reencontro com os co-autores era, na verdade, uma nova despedida, pois quando o espetáculo urbano terminasse, Luíza ficaria só para ver o cenário desarmado, sabia disso e procurava esquecer. Ficaria só e escreveria tudo sozinha.
Elas se foram e Luíza ficou só. Foi aí que se pôs a olhar para o risco, o risco que trouxera desde o pouso. Desenharia alguma coisa a partir dele, pensou. Mas ainda não sabia nada de futuro e permaneceu ainda no tempo do trânsito, gastando muitas horas apenas para olhar o que já havia traçado.
II

Um bebê tinha nascido depois que partiu, foi a única notícia que teve antes de entrar num significativo espaço de tempo incomunicável. E isso a fazia pensar que o crescimento dessa criança seria para sempre a medida do tempo da partida. Ela ficou por muito tempo como se não escutasse ninguém, como se não falasse, como um grande silêncio depois da verborragia do último tempo. Breu estava sozinha, reconheceu depois. E sozinha como nunca esteve, pois aquela solidão era proporcional à lonjura que estava das fronteiras de seu país, era quase uma solidão linguística, para não falar de afetos, ao passo que seu único exercício era caminhar e ser uma na multidão daquela legião estrangeira.
Enviaria, naquela temporada, envelopes apenas com folhas secas de outono, ouviria apenas canções de exílio, procuraria bancos públicos para sentar e observar. Os olhos de Breu eram atentos, muito negros e procuravam os tais objetos voadores no céu. Até que, primeiro de tudo, começou a repetir uma mesma cena e instaurar uma rotina. Era uma espécie de plano sequência que iniciava com o movimento circular de dedos no iradinho, para a trilha sonora de fones de ouvido, depois o ritual de luvas e mãos no bolso, para acionar a porta giratória e começar o dia de cada vez.
Os dias mais difíceis eram aqueles que precisava aprender alguma coisa e foram os primeiros dias de aprender sotaques e reconhecer fonemas que Breu repetiu a mesma música no mesmo trajeto diário para tentar entender por que Caetano disse if you hold a stone. Primeiro pensou que se sentisse the wait, a espera daquela transição, logo, entenderia algo. Algo de grande, qualquer coisa perto do que seria a sabedoria. Depois imaginou que a palavra certa fosse the wave e o importante de navegar era saber sentir a maré, a cadência de cada onda para compreender o esforço de segui-la e chegar através dela em algum lugar; ou não chegar simplesmente. Passou algum tempo entendendo que era essa a mensagem do marinheiro só e a metáfora de sua presença no livro. Por último consultou dicionários para traduzir que se sentisse the weight, o tal do peso da pedra, nunca estaria atrasada para entender.
Não entendeu. E nos dias mais frios se concentrava mais em cadê meu sol dourado? ou cadê as coisas do meu país?
Apesar de estar cercada de cidade por todos os lados, foi a primeira vez que o seu silêncio se desdobrava no coro daquela canção. Estava só, mas tinha fones de ouvido. Yes, she said.
Mas não demoraria muito para que Breu criasse uma nova casa para si, ainda que fosse um quarto dividido numa pensão de moças, convidasse alguns poucos falantes para entrar e encontrasse novas palavras para plantar seus pensamentos agora em outra língua. Na verdade, ela começou a gostar disso de silenciar o que já sabia e inventar uma nova história onde encontrasse novos sentidos para seus trajetos, numa espécie de reterritorialização intuitiva, que foi se dando aos poucos até o dia em que Breu se tornou não uma, mas a própria multidão, ainda que isso fosse muito mais movimento do que significado, muito mais táctil do que semântico.
Ela estava preparando a hora de voltar. E para isso, tudo que fez foi experimentar o trânsito, dessa vez não nos livros, nas autorias, mas no ser e estar do seu corpo. Por isso, o que mais Breu aprendeu a fazer foi ver a vida a pé. Era um andar sem destino, de descoberta, de risco. Quantas vezes ela não se perdeu e sempre no movimento de se achar sozinha, tempos depois, aprendia que era errática a descoberta de novos caminhos.
E era como se Breu estivesse correndo, mesmo quando andava devagar, penso. Correndo num fado ritmado, dramático, é claro, como se estive de mãos dadas com aquela cidade, numa grande roda, no frenesi dos versos de que ninguém volta ao que já deixou, e que mesmo assim ninguém larga a grande roda, o destino anunciado em violinos rapidamente fatais do tempo que corria no vagão, no trem, no metro, nas calçadas que movimentavam seus pés. Por onde havia entrado? Já não lembrava partida nem chegada. Breu se acostumara, semana após semana, a olhar pra frente e seguir, encarando o vento abaixo de zero de olhos pintados e muito volume nos cachos. Iniciou andando, mas chegou num ponto em que correu. E os versos eram implacáveis e muito claros e portugueses: ai que ninguém volta ao que já deixou.
Foi nesta velocidade que uma hora ela pegou um impulso e voou de volta.
I

Luíza olhou cada aresta da casa desmontada, tentando guardar pra si um pouco dela própria, que se desdobrou por aqueles cantos e cômodos naquele último ano. A radiola não estava mais lá e mesmo assim Luíza ainda ouvia Domingo, com Caetano e Gal, disco que a fez um dia querer trilhar o caminho de volta, sem que soubesse – e isso talvez já supunha naquele ponto da história – que voltava para um lugar imaginário, onde o nascimento era o único fato, mas não sabia das estações, nem dos rios, nem nada que não fosse mero recorte do grande painel que construiu de sua cidade natal, por vezes folclórica, outras tantas ideal para começasse tudo outra vez, para que enfim tudo mudasse.
Só que ela escolhera um caminho mais longo. Antes de voltar, Luíza atravessaria sua primeira grande fronteira. Luíza iria para o estrangeiro, virar uma estrangeira. Seriam dois trajetos, duas mudanças: de uma cidade à outra e depois a próxima, a primeira de todas. E por isso, nesta cena, Luíza olhava solene para aquilo que não chamaria mais de casa dali a alguns instantes, que já estava mais do que nua, só habitada pelo o que deixara pra trás – alguns móveis, frascos, potes vazios de sorvete, produtos pela metade – e dizia adeus a tudo e também àquela janela, que naquele momento era a presença mais forte da cidade, posto que estampada de árvores. Decidida pela partida, mas com grande amor por aquele chão e pela vista daquele fim de asa, o seu território, Luíza trancou pela última vez o apartamento 523.
Ajeitou a mochila nas costas, com o coração num disparo só, e encontrou-se com o motorista que aguardara dizendo você está atrasada e reclamando que os olhos ainda estavam borrados da noite anterior e que provavelmente ainda estava com álcool no juízo. Ele não sabia que o que lhe doía era a grande intervenção de agulhas que fizera no corpo e que a partida era tão aguda quanto a cicatrização daqueles rabiscos na pele. E que a noite anterior foi nada mais que a sensação de que não havia mais tempo, e caminhava nua pela casa com os amigos que tentavam um registro de seus passos e riscos, fotografando tudo em três, dizendo eu te mando tudo por e-mail, e ela, repito, andando nua pela casa feito alguém já sem norte e ao mesmo tempo preparando mapas, guias, endereços e todo o resto para a partida. Sorria de desespero, se o fazia. Por que diabos havia escolhido algo tão grande, tanta mudança numa só? Luíza e seus amigos – os co-autores – se demoraram horas naquele quarto construído para que fosse cenário, encenando sem dramaturgia uma peça cuja personagem principal era a despedida. Sendo que a despedida estava inscrita no corpo de Luíza e datada. Tinha hora pra acabar e já não tinha mais tempo para dizer adeus aos amigos. Já não tinha mais copos nem cadeiras nem sossego. Me desculpe, meus amigos, mas preciso morrer um pouco. Enviaria a mesma carta para muitos destinatários, depois, com tempo, mas agora precisava sair de cena.
Ela foi o trajeto todo meio surda, talvez nem tão solene como antes, porque sabia que voltaria à capital. Estava deixando pendente uma defesa. Mas ela percorreu o trajeto ao aeroporto com o que agora suponhamos que seria uma felicidade clandestina, uma vez que é isso o que chamam do sentimento furtivo que nos fala alto ao corpo, afiado ao coração e mesmo assim é intensamente oculto, pois incógnito. Chegara. Era hora de descer. Desça, Luíza, vamos, disse ele, enquanto ela ainda se demorava recostada no banco do carro. Ele fez algumas recomendações – e ela ainda meio surda – e no meio delas ela o abraçou forte, mas muito forte mesmo, talvez materializando nele a despedida de todo o resto, e foi a única vez que Luíza chorou naquele adeus, e chorou de medo, rápido, mas alto, sem que pudesse disfarçar, tomando seu pai nos braços porque naquele instante sentiu muito medo de ir embora, de atravessar fronteiras e de mudar de vida. Por que diabos havia escolhido algo tão grande, tanta mudança numa só? Depois disse, sem limpar lágrimas nem nada, pois havia sido um choro seco, quase como um uivo, obrigada por me comprar essa passagem, por me deixar passar. Obrigada por me dar teus braços para que eu possa alçar este vôo. Obrigada por me ensinar que a vida pode se navegar sem medo e sem bússola. Obrigada. Eu dou notícias quando puder. Tchau.
Deixei de lado os pretéritos e escolhi voltar ao presente para falar do passado, para coreografar a grande roda. Cato algumas tachinhas de ferro e perfuro o bloco na tentativa de grafar um trajeto. Escurece e não posso mais ler minhas anotações. No entanto, a única luz, a da tela, ilumina meu rosto tal qual um holofote e não abro mão deste prazer por nenhuma letra ou item sequer que me guie. Vou assim, tateando as teclas e formando palavras no breu, só guiada pela cena que eu mesma indico aqui, no instante-já e neste feixe de luz que me põe no palco. Recorro ao monólogo para lembrar-lhes como cheguei aqui. Preciso do ato, da narração em ato para organizar essa montanha de post-its que agora estão escuros na mesa.
Começo pelo retorno, mas levanto um pouco para deitar-me e relembrar a partida. É domingo e nada é tão veloz assim num domingo.
Não faz sentido
dar sentido

Embaralho as cartas novamente.
18 – O moço das cartas
“Agora que agora é nunca” *

Ela me disse que tinham dois rapazes nas cartas e não tinha nenhum. Até que apareceu, muito tempo depois, um, depois outro. O primeiro chegou e não veio. Não era um terráqueo propriamente e habitava meus sonhos como o maior e melhor protagonista de paixões em alto mar. Raimundo vivia comigo na temporalidade outra das cartas de tarô, na virtualidade das cartas de amor. Mas seu destino atracou no meu porto e não desceu. Permanecemos na irrealidade de um iromance.
20 – O velho marinheiro
“Agora volta pro novelo” *

João era estrangeiro e demorou para que falássemos uma língua comum, essa que chegamos por um acordo, uma espécie de língua criola, minha e dele, para que pudéssemos entendermonus além do silêncio e dos corpos. João era marinheiro como eu, como o outro marinheiro que passou pela beira da história, mas não ficou, e, também como eu, havia recém ancorado quando nos encontramos no dia em que tudo mudou. Ancoramos os dois nossas canoas e fizemos da âncora um balanço. Nela nossas vidas deram uma dessas grandes voltas que anunciam os presságios.
21 – O círculo

“Agora vento no cabelo” *

A era de aquários havia sim se consumado naquele ano nove. Os sóbrios que duvidassem, mas eu havia feito a transição, fechado um círculo, encerrado o trânsito. Cheguei no porto e dois meninos me receberam correndo: o pai e o filho. Foi-se o tempo de ser só eu. Não me lembro exatamente quem me disse pela 1ª vez da era de aquários. Sei que estava pesquisando 1968 e cheguei nisso. Quarenta anos depois, falava-se também em transição da era da noite para era do dia. Mas o que eu soube era que aquários seria plural, que sairíamos do individual pro coletivo. Do egoísta pro altruísta, diriam os mais sóbrios.
16 – O retorno

“Agora eu nasço lá de fora” *

Fui admitida, permitida de voltar oficialmente à torre. Transitava novamente entre os vidros blindados do castelo universitário e os jardins tão livres ao seu redor povoados de calangos. Eu me surpreendia em como a torre era outra e ao mesmo tempo era mesma, sobretudo no que se referia a presença de calangos no campos. Mas dessa vez eu estava do outro lado, de caneta vermelha na mão. Eu era a mestre de obras no palco das salas de aulas e tinha a árdua missão de desestabilizar a rígida polifonia daquela babel, propondo, sempre que não me doía os hematomas, o exercício de nos desequilibrar e cair. Mas eu estava do outro lado, de caneta vermelha na mão e comecei foi a sentir saudade de ser eu a aluna, de ser eu quem ouve e não é obrigada a dizer, de ter aquela liberdade das possibilidades infinitas. Na juventude se tem a falsa impressão de que se pode escolher o destino. Escrevi a vida a lápis antes dos vinte e cinco. Agora, com a caneta empostada, impossível de rasura ou borracha, passo a limpo uma história... uma versão da história para ser impressa. E tenho uma saudade eterna de todos os esboços e rascunhos. Tenho saudade do futuro escrito a lápis e por isso incessantemente reescrito. Reescrever era o barato. Agora algum futuro chegou e algumas dessas frases estão a caneta. É hora de imprimir alguma vida.
6 – A decisão
“Agora vivo na barriga
Agora brigo pra voltar
Agora.” *

Ela primeiro me perguntou se podia me pedir algo. Eu disse claro! Ela então fez qualquer coisa como um suspense ou uma timidez inventada naquela gargalhada adorável e escandalosa. Eu ri também, mesmo assim temendo o tamanho do pedido. Foi quando ela me disse eu queria que você escrevesse a minha história. Sorri apenas, olhando seus olhos de mar. E embora eu tenha desejado dar-lhe isso, como um eco e um carinho para seu grito engasgado, eu não consegui escrever uma história que não fosse minha. Mas daí aconteceu da minha história se cruzar com a dela. Eu também passaria nove meses de ventre cheio e tínhamos, então, como nenhuma outra, uma experiência repartida, impossível de ser imaginada posto que vivida agudamente. Foi então que contando a minha história eu contaria um pouco da dela e mesmo assim sabíamos que nossas narrativas não seriam nem nunca foram a mesma, embora vez ou outra se cruzassem no verão.

* “Agora”, Arnaldo Antunes.
A cartomante

Ela era loira, a cartomante. Me recebeu vestida como quem teve esmero em fazê-lo, equipada de brincos e anéis. Guardei na memória apenas que eram grandes e dourados. Ela era loira, simpática até e acho que tinha dedos e unhas longas, mas já não sei se isso cá já é do imaginário. Mandou-me sentar e sob a mesa cheia de panos coloridos, que pareciam cangas de praia, montes de diferentes tipos de baralho me esperavam. Ela fez uma oração, evocando não soube bem quem nem qual linhagem e me mandou tirar uma carta do baralho maior. Era a carta que definiria o meu momento atual, explicou. Permaneci calada como ela mesma me recomendou, pois disse que gostava de adivinhar sozinha tudo, apenas ouvindo o que o tarô lhe permitia saber.
Retirei uma carta, solene como pedia o ritual já iniciado no quartinho de consultas de Luzia. Luzia era a cartomante loira e misteriosa que me atendeu naquele dia de verão. Era verão no último mês do ano e sentia nada mais que um vazio enorme. E isso era tudo no dito momento atual em que entrei para consultar Luzia. Queria saber o que havia pra depois disso, se alguma coisa viria preencher o oco que já havia subido para meus olhos escuros e estava ali exposto caso Luzia não conseguisse ouvi-lo de suas cartas.
O enforcado, a carta doze, foi a que entreguei nas mãos da cartomante depois de repartir o baralho. Era a carta do presente e ela disse que não entendia como havia tanta tristeza por detrás daquele sorriso, posto que era belo e jovem e me mostrou a imagem do enforcado, preso pelos pés, dizendo este é o seu agora.
Mas o jogo ainda não havia começado. Ela embaralhou tudo de novo e disse parta. Eu o fiz e ela iniciou a leitura em voz alta, anotando quase tudo numa folha de caderno que seria minha no final da sessão. É pra você guardar e voltar a ver no futuro, me orientou. E nunca mais eu voltei a ver a folha.
Agora, leitor
é hora de virarmos

não página,
livro.

Sim, leitor
é hora de livrarmos
isso
daqui.

vamos
vire-se.
abri a janela e eles estavam aqui me observando. eles estão aqui, agora, não vê, me olhando do lado de lá do vidro?

escreverei assim mesmo.
a partir daqui
é tudo ficção.





Não tive nem mais um segundo depois daquela madrugada. Nenhum segundo para considerar sozinha aquela realidade. Hiper realidade, entendo hoje. E as lacunas me tomaram de tal forma que enlouqueci, confesso, enlouqueci. Tudo porque caí nas mãos dos sóbrios e não pude mais considerar tal realidade sozinha. Me foram enchendo de frases, rótulos, sub-textos, canções de ninar. E o meu tempo de considerá-la sozinha, quêdê? Mudo. Foram 20 luas, vinte luas de lapso, silêncios e gavetas vazias. Fui trancafiada na província, essa era a idéia, a paranóia. E a paranóia é um teatro, é isso? Não consigo separar as coisas e permito, concedo que os loucos saiam por aqui fazendo cortes nos tecidos de meu texto. Excluo meus leitores. Excluo. Preciso considerar sozinha aquela realidade. Preciso voltar para a última parada, retornar a esse trajeto invertido e partir de um domingo em que decidi, sem volta, esta realidade. Escolhi, no escuro, confesso, mas escolhi pela ação, pelo movimento, pelo prolongamento da vida. Nem sei a grandiosidade exata de tal gesto, mas sempre soube que era grandioso. E tomei por isso, decidi pela grandiosidade que me tomou na primeira possibilidade real de estar grávida. Era grandioso porque eu havia me emprenhado de terra, e a minha terra havia me feito fértil.
Paro um pouco e rememoro tudo que se passou nessas últimas vinte luas. É estranho, mas há uma certa saudade, estranha ainda, naturalmente, mas uma saudade da tragicomicidade dessas vinte luas. O corpo, o nosso corpo – corrijo com o que ele me ensinou de que somos o nosso corpo – nós, portanto, vamos virando Outro que não nós mesmas, embora naquela lua a gravidez fosse nada mais que dois traços tingidos num teste de farmácia.
Isso tudo me faz lembrar que no mesmo ônibus, minutos antes da primeira ponta de desconfiança, eu pensava que eu tinha uma colher de melodrama em mim e ia dizer a Ele, olhe, você precisa entender isso. O coletivo contornava São Caetano e de alguma ladeira eu avistei o Bonfim e não entendi como havia surgido mar por entre aquele horizonte de barracos. “Eu dei a volta na Baía?”, me indaguei ainda na confusão daquela profusão de narrativa visual. Sei que soube que era um movimento circular. E foi naquela volta que dei em mim mesma, que cambaleei e tomei uma grande rasteira da vida.
É, eu não tive nem mais um segundo depois daquela madrugada, depois daquela viagem a São Caetano. Foram tantas luas que não tive fôlego de acompanhar a vida. E por isso, dizer. Foram tantas voltas, voltas, voltas, quantas voltas dei em mim mesma para me levantar. E quantas foram as explicações, até que por fim decorei uma e fiquei repetindo, que nem gravador, aquilo que nem eu mesma sabia. E quantas foram as perguntas e as não respostas que era eu agora a responsável pelas lacunas, em dar aos outros paredes em branco.

*

Quando completei as vinte e uma luas, lembrei das vinte e duas cartas. Era isso que dizia o vigésimo primeiro arcanjo, entendi depois de futucar o baralho, há tanto tempo não aberto. Era essa a transformação, o chão onde ainda nem dou pé.
Isso não é transitório, foi a única coisa que pude constatar e mesmo assim não entender.
É a saída do trânsito para plantar, me plantar, penso agora.
João me estende a mão, ele está no banco ao lado. Foi ele quem me entregou as sementes que secavam na janela. Eu já havia me esquecido delas, já havia me esquecido que levava sementes no bolso, que estava fértil, que tudo estaria prestes a mudar. Fizemos delas muda, mexendo e regando o solo pelo simples prazer do movimento. Choveu e a gente nem viu. Cresce agora em mim e é nossa. Penso num jardim, ele numa horta. Conto as luas. E eu vou aprendendo a ser terra na beira-mar desde o dia que entrei no novo ciclo, desde que mudei e emudeci.

*
Fez-se um novo tempo.
Estaciono e tiro as malas, as minhas e as outras. Procuro um canto para morar, sentar e escrever. Alguém já mora em mim e em meu coração já pulsa o novo.
Salvo tudo num documento escrito lápos, as novas frases depois do espaço vazio. Resisto a mais um asterisco, mas percebo que a narrativa não se resolve mais numa carta só. E já basta de histórias em círculo.
Carta VI – Os enamorados

Tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:
(Ana C.)


Não estávamos presos a nenhuma linha, senão a qualquer coisa como a linha do tempo ou qualquer existência que permanecesse nesta. Mas naquele dia eu mostrei que estavas, como nenhum outro, nas folhas de meus cadernos de desenho. Isso porque, desde o começo, sentamos diante daquela parede branca e muda a que no final eu não resisti e lancei, quando já parecia tarde, feito louca, um balde de tinta preta sob as marcas rosa-choque de batom que despretensiosamente inscrevi naquela folha branca de concreto. Eu não aguentava mais calar com tinta branca os meus gritos e comecei abusar das tintas escuras, sobretudo o marrom que fazia questão de obter com a ponta dos dedos, partindo sempre do vermelho. Era a experiência tátil que mais me aliviava naqueles meses que sucederam a tempestade, quando troquei as bancas de caligrafia pelos caderninhos de desenho.
Mas deu de um dia tu apareceres com os olhos pintados de azul. Azul com vermelho dá o quê? Eu respondi: verde. E tu disseste roxo, azul com vermelho dá roxo. Eu não entendi o que poderia significar este tom na história, mas repeti “roxo” com alguma satisfação, já que a cor não me ia mal. O que não andava bem era aquela parede de nada, então, eu não resisti e lancei, tarde demais, louca e melodramática, um balde de tinta preta sob as marcas com as quais despretensiosamente me inscrevi na tua folha branca e muda.
Eu só não sabia que depois estaríamos unidos por qualquer coisa como um nó cego de fita sabe-se lá de que cor. Assim julguei ser. E a decisão era continuar na trilha de mudos convites e destinos de nada ou, então, começar outro desenho com os dois traços que permaneceram no que restou da superfície branca. Foi aí que, novamente sentados, finalmente largamos da folha, da parede, da cama branca, olhamos de lado e demos um laço. Um laço roxo.
o mar é imenso. escrevo ao vento da brisa marinha no passeio público escrevo. por que há tanto tempo? apesar de ter perdido o sol se pôr, ainda é dia e as nuvens passam rápidas sob as nossas cabeças. paro um pouco, respiro fundo e peço alguma ordem e calma para a minha. agora penso na descontinuidade do fio condutor. eu não caibo num fio condutor, já disse e essa frase é velha. mas agora penso que este cordão que se forma por dentro deve ser qualquer coisa como um fio condutor. ouço os passos calmos e quase silenciosos dele. Ouço seus passos se aproximando das costas dos meus ouvidos. Será que o ser que habita meu corpo lê o que eu escrevo? recebe qualquer coisa de efeito verbal por seu fio condutor? as nuvens continuam passando rápido pelas nossas cabeças. mas já me permito não pôr ordem para entrar no vazio da calma, no branco da calma. a calma é uma página em branco ou toda preenchida? penso na figura muda da escritora lendo, com os ouvidos, o meu relato. ela é dessas que usam só as iniciais como sobrenome. como "F.", "C.", como "B.". Agora penso no que vou dizer quando os passos chegarem. como vou relatar, falar de nuvens, iniciais e tópicos no acaso da vista do passeio público. como vou falar de nuvens pesadas sem descarregar? não quero chover, mas estou cinza, muito cinza. É este o setembro nove? Mesmo sem me libertar, eu vôo? Eu vim e agora cortarão minha asa? Ou me darão outra, para formar um par? Conjugo o verbo como se "eles", grupo de mais de uma pessoa absolutamente desconhecido, fossem os agentes da distribuição de asas por aí. Avisto um barquinho de longe, num mar imenso. Estou na terra e agora eu mesma sou um jardim com raízes crescendo na água. Uma lua, como unha, estampa o céu. A noite vem chegando. E o que eu digo a Ele? Eu disse à escritora e ao poeta, já disse tudo hoje, na tarde que vai se indo: eu não consigo escrever. eu não consigo escrever nem conto nem carta, nem mesmo as letras desenho, só inscrições garrancho. eu não consigo escrever, repeti. Eu não consigo mais nada de antes, eu disse e percebi como havia e há em mim a resistência em mudar de fase no vídeo-game. Sair da estabilidade de saber onde dar o soco para ganhar os pontos. Ele vai chegar com seus passos breves e eu não sei o que eu digo, penso de novo. Deve ter alguma vantagem nisso. Os homens conversam no banco do passeio público, as nuvens começam a ficar mais carregadas, pois vai anoitecendo e já podemos ver sombras. Imagino, então, não mais seu passo, mas sua sombra. Um violão, um cheiro de fumo, buzinas lá na via principal - deve ser 18 horas - e uma moça que estava atrás de mim e parecia também esperar por alguém vai embora. A luz é amarelo-alaranjada no passeio público, registro enquanto penso em quanto ele mudou e como a sombra começa a me impedir de escrever. Lembro do setembro passado e acho bom ter saído da tranca da casa, das paredes do apartamento de concreto, para estar debaixo dessas nuvens, que já estão quase negras de tão cinzas. Deve ser uma expansão de mim mesma, psicologizo. Isso inclui a minha barriga e evoco novamente, pelo acaso, o movimento contra o barrigacentrismo fundado há doze meses. O céu já está quase todo negro e seus passos devem estar bem próximos dos meus pés. Olho para trás pela primeira vez. Não gosto. Passei um, dois, muitos fins de semana olhando para trás, com intervalos semanais de aceleração em 36X. Agora quero parar nessa folha de papel. No instante dessa folha. Afinal de contas, estou grávida de um instante de dois. E estou prenha de terra e de mar à vista.
Só há alguns pedacinhos de azul celeste no céu. Por que me perco tanto de mim quando escureço? Pouso meu olhar no infinito como se tivesse sendo olhada por quem chega. paro um p
não sobra tempo
para passar a limpo

não sobra tempo
para passar setembro a limpo

não sobra a limpo
nenhum setembro
para passar o tempo
O primeiro Raimundo apareceu no carnaval. Em seguida vários da mesma espécie, distribuídos em diversos setores, ao decorrer dos primeiros meses. Mas foi na semana depois das cinzas, quando eu ainda procurava um de carnaval, que Raimundo Luiz me apareceu. Ele pediu pra surfar no sofá da casa que não era mais minha, na cidade de onde havia partido. E deu-se um atraso astral.

*******

Comecei a estender a palavralogia ao campo do R e resgatar conexões com Raul, Alfredo, André, Marina, Eduardo, Vera, Ricardo, Rafael e mais uma lista de nomes e pessoas a mim ligadas pelo elo dos erres. Os erres que ligavam meu nome ao de outros era por mim interpretado como um anúncio de uma grande coisa: desses elos de laço e de nó, sempre atados num movimento invisível e desconhecido, sempre grandiosos. Sabia é que havia uma relação, um elo, que fosse, entre nossos “rês”, como dizemos aqui. E, além disso, o r de mar e de ar e de amor, é claro, mas, sobretudo a diversidade fonética de dizer o rê. Eu gostava especialmente do /r/ retroflexo e provavelmente pediria que ele me dissesse no ouvido “estandarte”, para vê-lo vibrar a língua e depois juntar a minha à dele, para vibrarmos, junto, em L. L, nosso segundo elo cruzado.

******

Voltei pra a casa que não era mais minha e reencontrei-me com a parede de escritos, o livro de citações de porta e janela trancadas. Tinha lá escrito em azul-marinho: eu hospedo infratores. Mas eu não hospedava mais ninguém e queria tê-lo tido hóspede, dançado com ele, pela casa afora, naquele cenário de palavras, mas fui embora antes do encontro que marcamos há anos-luz em algum outro mundo. Fui embora de novo, dessa vez de vez e deixei meus cachos em Brasília no mesmo adeus que dei àquelas palavras e às reminiscências das velhas histórias.

*****

Havia deixado os cachos em Brasília e seguido a vida em frente sem cabelo, sem fios, quase sem memória. Quando cheguei, recebi a primeira carta roxa. Era um presságio. Raimundo Luiz começou a me enviar pelo correio cartas homônimas de tarô. Acompanhada delas, um carretel de linhas: ao puxar o fio, me emaranhava em suas poesias dependuradas. Sei que agora correspondências chegam o tempo todo em nome de Raimundo. E me pergunto, coçando o coro cabeludo com mania de careca, que diabos isso significa.

****

Ele disse qualquer coisa, mas significamente encantadora e mágica como sempre o faz, quando distraído, e imediatamente reconheci que ele era o moço das cartas. Foi aí que bati na porta. Três tocs. Quando ele perguntou quem era, eu disse que era a moça das cartas. Que cartas?, ele disse. As do correio. As do correio eletrônico, respondi.

***

Eu oferecia malhas e rendas e pontos-parágrafos e tecia nossa colcha, com os fragmentos de nossas mensagens, nas linhas tortas da espera. E de repente ia se formando um mundo vasto de miudezas diante dos meus olhos. Vez em quando foi com esse tecido que me fiz saia e saí rodopiando pela noite, para reencontrar-me com a aurora das madrugadas. E era ali, ilhada pelo mar e com os pés na areia, que queria tê-lo vivo, ao vivo.

**

Só Raimundo Luiz ficou na profusão de Raimundos. O mais vasto e tão vasto como todos eles, mas o mais Raimundo de todos ficou. E ele era o único que eu nunca tinha posto os olhos e, no entanto, o único capaz de corresponder o olhar.

*

Puxei uma carta no baralho para nós e saiu a Lua. Corri léguas para caber nas horas. Corri para ultrapassar o atraso que nos mantinha caros desconhecidos. Corri para não ser ultrapassada pelas 40 semanas lunares e as 60 horas de trabalho. Mas era um atraso astral e eu não cheguei.
Carta XVIII – A Lua
Para Rafael Manfrinatto


Alô? Me ouve daí? Estou com um canto engasgado na garganta e só você pode me escutar, pois me escutas mesmo com fones de ouvido à quilômetros de distância. Estou ouvindo Beirut e só consigo pensar em ti quando ouço Beirut. Lembro das tantas vezes que imaginei tu e teu escorpião entrando em mim por debaixo de uma colcha de retalhos numa cama branca. Lembra? Lembra da cama branca e das escadas de travesseiro? Vejo a lua cheia daqui da janela do escritório do birô de palavras. É lindo como ilumina toda a faixa de mar que temos no recorte desta vista. Não é em escorpião a tua lua? Sim, eu fantasiava sempre a gente se amando ao ritmo de Beirut. Mágico, alto e sensual como os metais das cornetas. Nunca me esqueço quando tu cantou daí “eu como eu como eu como você”, este fato nunca consumado senão nos nossos encontros em Saturno. Tu me estendia amoras daí e elas nos levavam, nus, para um mesmo sonho. Eu também comia cada uma das tuas palavras e me engravidava delas. Um júlio grávido, assim espero, dizia uma das frases que resgatei da nossa pequena âncora xlm. Era das tuas palavras que eu engravidava, Vênus, porque apesar de saber que não poderia nem saberia mais viver esperando que o mistério da Lua se desvendasse e que pudesse tê-lo no Sol de minha Terra, eu continuei comendo tuas palavras, fazendo amor em linhas cruzadas e sonhando, sempre, contigo. Contigo, conosco, com nossas vozes cantando juntas, ritmadas, esta narrativa desconhecida que se criara sozinha.
Deixo aqui este telefonema, Vênus, com esta voz aguda, para que assim, colocando tudo num quadrado, tu entendas que amoras, amoras mesmo, entende, as amoras desta colcha de retalho vieram de ti. Para onde foram desconheço. Sei que deixaram este cheiro fresco na cama e tuas palavras ao pé do ouvido, embora este desejo de mordê-las tenha ficado para sempre perdido com este sonho nunca materializado de viver no teu planeta-regente. Meu Deus, estou dizendo adeus! Alô? Alô? Me ouve daí? É que você não veio e deu de júlio se emprenhar de outro gosto. Sabe? Não, você não sabe e agora me diz como eu te explico isso sem olhos? Ah que esse Beirut nos ouvidos não me deixa abandonar esta vontade tórrida de transar com você numa cama branca ou roxa ou no chão, que seja, numa parede, eu sempre teria Beirut em meus ouvidos nesta transa de Luas, com teu ferrão de escorpião em meu corpo, cravado. Sabe que voaríamos, porque minha lua é alada? Sei que sabes.
Por isso, porque sei que sabes de tudo isso, que bordo teu nome neste recorte, para que nunca penses que passou incólume nas linhas desta costura. Pois se era contigo que dialogava verdadeiramente enquanto tecia essas cartas, contigo divido a autoria deste canto líquido de frutas vermelhas. Por isso também é que repito, solene, agora, nesta secretária digital:

Tua voz
Me faz querer teu corpo

Sempre o fará.
Desde que ouvi teu canto, me apaixonei por ti, Vênus, tu que és narrador e trovador de linhas roxas, tu que és surfista de ondas e sofás virtuais.
Mas parece que sou obrigada a abortar este sonho, para parir Outro.
Me liga?
Claro, claro, é que claro que eu te explico tudo.
Mas me liga de volta?
Hein?
Alô?
Alô? Me ouve daí?
Refazendo

Pedi licença para entrar e a benção para regressar, minha mãe, nesta revoada. Agora, depois do pouso, ancoro na terra e, mesmo assim, continuo a navegar.
Não paro de seguir...

***

Refazenda

Só sei que tem um mar e que carrego uma semente de mar em mim.
Aguardo.
E aguardo seu agosto amargo, Salva, na relva verde do plantio de Júlio. Em janeiro, o doce mangará, eu sei. E aí já seremos dez. E zero, de novo, Salvador.












Ryoko Suzuki, Bind Series

Era domingo, dia da semana nefasto para começos. Porque começar é sempre segunda ou, no máximo, sexta-feira. E a semana nunca começa verdadeiramente no domingo. Pois foi no silêncio agudo do fim de um domingo abafado e calorento que a personagem acordara. Despertara com um grande escuro de memória no juízo. Saiu do breu das coxias de onde havia levantado e caminhou até a boca de cena.

Encontrou-se com o vazio no espaço.

Um grande espelho, de ponta a ponta, tomava toda a extensão do fundo do palco. E só. O resto estava nu. Nada além de um calhamaço de folhas entulhadas no meio do tablado, com um grande foco de luz, branco e redondo, também ao centro.

A personagem aproximou-se da iluminação, mas não se pôs nela. Virou-se para o espelho, procurando algum indício do papel que deveria desempenhar naquela noite de estréia.

No primeiro olhar, a primeira queda: tropeçou nos laços da sapatilha desamarrada e caiu, exata, na luz. Foi de susto o tropeço. Na imagem refletida viu o horror de seu corpo mutilado: sua boca estava costurada com linhas vermelhas, secas de sangue. Tentou dizer algo, já de costas, atemorizada pela imagem do espelho, mas absolutamente nenhum tipo de som foi produzido. Nem um ruído sequer.

Não lhe doíam exatamente as perfurações da agulha. Era uma dor mais profunda, de corpo inteiro, que era reconhecida apenas por um eco dormente que surgia como se de dentro dela, e lhe parecia ser isso a prova de que não estava granulada nas imagens do plasma de uma tela: havia um corpo vivo naquela cena e lhe doía. Pôs-se a escutar aquela materialidade, quase encontrando um filete de voz capaz de tecer algum sentido, o sentido de estar ali.

Mas que sentir era aquele que também não lhe dizia? Onde estava o texto, a partitura da performance que deveria executar?

Não tinha nada decorado.

Nada dava a mínima pista do que deveria encenar.

Nenhuma linha garranchada nos papéis lhe indicava fala.

Só tinha ali a dor de ser, mas isso lá não é papel de uma personagem, pensou.

Assim nascia Ela.

Ela era seu nome. Melhor seria se chamasse ninguém, pensou ao olhar no espelho aqueles olhos arregalados à procura de si, já livres do medo de sua imagem deformada, já que aquilo era o que unicamente tinha de concreto para examinar. Tocou-se e mirou o retrato, repetidas vezes. Encontrou mais linhas nas juntas, costurando cada extremidade, cada dobra, como uma grande prótese.

Ela era escrita. Tinha corpo, mas não tinha voz. Mas havia algum tipo de inscrição naqueles remendos. Havia verbo costurado àquela carne, Ela tinha certeza.

As linhas aumentavam no fio das horas daquele domingo e mesmo o movimento foi lhe fugindo de controle. Ela perdia seu gesto livre, engessada no espaço de luz daquele refletor que já começava a lhe cegar.

Queria voltar para o engenho, desejou com os olhos fechados. Lá trocava livremente de papel e era infinitamente reinventada. Tinha sempre rosto, traços bem delineados, uma maleta cheia de maquiagens para as sombras e cores que bem conviesse. Lá se chamava nome, usava pronomes, executava verbos. Vivia em voz alta e mesmo quando emudecia, por vontade própria, era capaz de improvisar gestos balofos de sentido e olhares gritantes de expressão. Carregada da força inspiradora de mágicos pós de arroz, vivia o clímax das grandes cenas.

Mas por que diabos havia parado ali, se perguntava toda vez que abria os olhos para a luz e mirava o escuro daquela sala de espetáculo, sem conseguir lembrar do caminho que a fez chegar ali.

Será que havia parado num rascunho? Seria a imensidão daquele oco, entre um período e outro, o espaço em branco, o silêncio da pontuação?

Os hiatos de tempo, de cada alfinetada das novas linhas, a faziam escalar e depois girar, desalinhada, no chão da circunferência, num movimento involuntário. Neste ínterim, pequenos buracos começavam a se formar nos tacos do cenário, como se aquele feixe de luz fosse aos poucos se transformando em uma ilha.

Permaneceu assim por longas, mas longas horas mesmo, talvez nem fosse mais domingo e já nem houvesse mais tempo, nem espaço. Só havia a presença de Ela amarrada a uma luz.

Foi quando o eco quase inaudível que ouvia de dentro de si, aos poucos foi sendo amplificado naquilo que já não sabia se era de fato uma sala de teatro. A voz de outrem. Não decodificava o que ouvia, mas escutava, como um sussurro, a voz de outrem.

Ela estava sob o domínio de um desses autores de produção aleatória e solta, quis gritar e cuspir e praguejar aquele que julgava seu carcereiro. Mas tudo que lhe restava era aquele sentimento mudo de processo criativo frustrado, de texto insatisfeito e, por isso, incessantemente reescrito, do pulsar indeciso do cursor de computador piscando. No engenho ela nunca sentiu os espaços vazios das pausas de digitação, aquele silêncio cortante que amarrava cada vez mais a sua carne.

Estou presa no inacabado, pensou, por dentro, cerrando novamente os olhos.

Ela não fazia sentindo no claro. Não tinha cabimento. Mal cabia naquela roupa apertada de bailarina seca, no papel envelhecido, na projeção que iluminava nada mais que sua silueta.

De repente, um barulho estereofônico se fez e uma valsa invadiu os ouvidos de Ela. Abriu os olhos e avistou novamente aquele pedaço de chão cercado de escuro. Aquela valsa tinha qualquer coisa que lhe dizia algo.

Era uma bela valsa. Melancólica como toda valsa, mas graciosa e grandiosa como todas elas. Havia um tom de urgência e uma alegria esboçada de quem sai pela vida correndo de braços abertos. A personagem era dramática, assim soube. E Ela era drama, isso sabia.

A valsa se repetia incessantemente, tornando-se progressivamente ensurdecedora.

Era a prova dos nove: a personagem tinha finalmente sido materializada e agora era capaz de dançar.

Não conseguia era tornar-se.

Ali Ela era a Outra e não aquelas que já sabia encenar.

Permanecia a dor de qualquer coisa como a transfiguração, uma plástica sem anestesia.

A valsa acelerava. Ela dava voltas, voltas e mais voltas, com uma forte impressão de que as linhas a faziam marionete de um passo certo e calculado.

Como era cruel e suado e custoso o parto de Ela.

Apenas uma grande pulsação de qualquer coisa sem nome que endoidecia na vertigem de voltas, voltas e mais voltas.

Só a matéria era objeto de sentido. Só objeto era Ela.

Foi neste clímax de valsa, nos passos robóticos de um balé amordaçado, que Ela se sentiu, pela primeira vez, verdadeiramente observada. Tinha certeza agora da presença, em algum ângulo, do dono dos ruídos de outrora.

Aquela luz.

Aquela bola de luz era um grande olho, entendeu. Ela estava sendo dissecada pelo olhar daquela luz branca. Não era capaz de distinguir quem estava por de trás do refletor, mas sentia os olhos de outro sob si.

Sem mais nada a perder, e usando a única coisa que lhe sobrara daquela cirurgia de linhas tortas, encarou o grande olho branco.

Cegou-se.

Com uma pirueta suicida, caiu novamente no abismo do engenho, no escuro de uma gaveta.

Ela morreu valsando num domingo interminável.

Ela morreu nas voltas das linhas do Outro.

Muda e cega, como um nó, morreu a personagem.

Morreu no backspace de um teclado, no blackout de um palco.

Carta XVI - A Torre

Depois de cair, retorno. Mesmo assim, só de passagem.
Me vejo sozinha agora na torre do castelo. Ele está cheio, mas não me reconheço mais nas armações desses óculos, nessas t-shirts coloridas, nas estampas recorrentes de che, nas camisas de futebol da Bolívia, nos baseados mal-embolados por risadas estereofônicas, nos cigarros emprestados e nunca devolvidos, nas grafites de artivismo temporário, nos movimentos sociais instantâneos dos botecos da redondeza, nas máquinas empostadas para auto-fotos coletivas, na galera da pós-, nas verdades vomitadas em frases na 1ª pessoa, nos alargadores milionários de bambu, nos dreads de franja lisa na testa branca, nas havaianas gastas de embrenhagem, nos cartazes ambientalistas sob as bitucas de cigarro, nos gestos largos de ordem eufórica estudantil, na reprodução xerocada de orelhas e trechos de livros bíblicos, nas coca-colas de canudo nos punhos de pulseirinhas de couro, nos fios calculadamente desfiados em órbita, nos cabelos longos das camilinhas hippadas de shopping, no tempo livre de um turno para o outro deitados no chão do pátio de concreto, nos olhares pseudoatentos às apostilas lidas ao barulho dos universitários, em quem escreve sozinha, com fones de ouvido, no supermercado de estilos desta narrativa visual, e se julga olhada ao som de folk gringo. Não acredito mais.
Só acredito na imagem sincera daquele moço ali, recostado, forçando a vista cansada para ler a revista que distribui gratuitamente como uma cortesia da Abril aos universitários de plantão, que aguardam o início do turno da tarde, atentos ao roteiro da performance.
Jovens, escrevo. Que diabo é jovem e até quando isso dura?
Hoje? Hoje jovem é interminável, me responde a moça da mesa-redonda sem eu nem perguntar.
Vou-me embora, ainda com os hematomas da queda.
Não sei se volto não.
Não me reconheço mais aqui no alto.
Agora já podes entrar.
Senta.
E continua quando a escolha certa é parar.

Depois de um longo silêncio,
A senhora destino entra, senta, sorri.
Com o rosto inteiro sorri.

Como um corpo que dança, sorri.
Cada ruga, uma lembrança.

Cansadas as pálpebras
se curvam
e os olhos se fecham para ver-se

(Léo Mackellene no Livro dos mais pequenos silêncios )


A profissional de saúde disse que é uma bomba de endorfina a paixão. Que nem droga, pode virar vício, advertiu. É químico, nada mais. Somos viciadas em endorfina, ela disse. Mas, olhe, o iodo da cidade litorânea deixa a vida mais fácil e lânguida.

*

Ceci me aparece com sua palidez defunta na luz amarela de um dia de semana. Ela vem, anda um pouco, saindo do quadro de depressão do seu quarto de bonecas. Ela recorda amores nos meus ouvidos, me narra as cartas do 1º amor e ensaia a valsa dos 15 anos no círculo da pista de cooper. Já sei e mesmo assim ela diz que queria voltar atrás. Eu disse calma, que não se flui o que não é fluído. A paixão é uma coisa que te pega por trás e dá uma rasteira, Ceci. Por isso, pode andar olhando pra frente, distraída. Eu não sei passar, me disse. Eu também não sei. E agora?, provocou. Não espero. Até quando? Passo.
Meu tempo de menina me fita naqueles olhos carentes de vida real. Vejo o tempo que não passou, porque empacou na espera. O tempo que ficou na vida vazia de dois.
Ceci é a 5ª pessoa. A 5ª pessoa era Ceci.

**

Éramos cinco naquele dia. Relutei em sair de casa, destruída pela ressaca do anteontem, mas cedi ao convite insistente da 3ª pessoa. Impus uma condição entretanto: que a gente fosse pro lado de lá. E eu exigi, até o final, que o trato fosse cumprido.
Foi assim, com um cácácá mal-humorado de palhaça bêbada, de voz grave e palavrões sujos, que integrei aquela orquestra de agudos femininos abafados no carro que seguia confuso para o centro da cidade.
Paramos numa praça, finalmente por unanimidade, dessas com igreja na frente, crianças ao redor e, no caso desta, com um batuque ecoando vindo não sei de onde enquanto as carolas cumpriam seu dever na missa de domingo. Meus olhos foram imediatamente hipinotizados pela vista para o mar da cidade baixa.
Um largo muro nos separava do despenhadeiro que ligavam as duas cidades. Encontrei um coração inscrito na pintura descascada da pilastra e parei na calçada para enquadrá-lo. Foi nessa hora que João e Pedro atravessaram a rua de pedrinhas, intersectaram nossas retas e tremeram a minha foto.
Pedro tinha um par de contas verdes nos olhos que imobilizou os meus por todo o tempo daquele súbito e improvável encontro. Mas foi a voz de João que ouvi primeiro, quando, outra vez no impulso da aceleração do anteontem, fui atrás de movimento. Ele estava parado e só, na porta da igreja, enrolando um fumo, quando pôs seus olhos gelados e silenciosos sob os meus.
Começou ali e eu já estava no ciclo.
E foi Ceci que os convidou para sentar no bar da cruz, quando descemos todos a ladeira. Nenhuma delas teria tal impulso naquele momento, incluindo eu, que já havia ensaiado um.
Éramos cinco naquele dia. João escolheria qualquer uma das 5 para atacar. Talvez até mais umas do que outras, incluindo a mim. Mas ele sentou do meu lado, por acaso. João sentou do meu lado e Pedro uma cadeira depois. Ceci continuou à minha esquerda, doida pra que um deles fosse aquele que viria lhe tirar do abismo. Um dia viria, essa era a única certeza nos seus longos dias de nada. Mas Ceci tinha uma gagueira infantil, e continuou invisível para o destino e inaudível para os desconhecidos.
Ninguém seria capaz de ouvi-la, a não ser nós 4, que mesmo assim não aprendemos a deixá-la falar.

***
Entrei na casa como se algo mais forte que meu corpo, que diga-se de passagem estava absolutamente adormecido, me puxasse atrás da porta. Quando penetrei a primeira delas, um cheiro absurdo de memórias me encontrou. Tive águas nos olhos e arrepio nos pêlos quando imediatamente inspirei o cheiro da casa de minha vó pelas narinas. É o cheiro da casa de minha vó esse, dividi com os estranhos, que não entenderam quão imenso era o espaço pra onde aquele, físico, havia transportado meu corpo.
Era um cheiro de casa. Uma casa com cheiro de muitas décadas que descascavam a tinta das paredes, que enchiam de cupins as portas, que mofavam todo o resto, mas que fazia, e fez, daquele chão terra firme para os meus pés.
Reencontrei o cheiro da casa de minha vó ali. O cheiro que já não havia. O cheiro, há muito morto no passado, da casa do corpo de minha vó que já não existia, da alma de todas nós que viemos de dentro dela.
Entrei naquela casa que virou abrigo, gaiola, mas que sobretudo deixou outro cheiro em mim. Um cheiro novo, químico e lânguido. Ali me estendi todo ciclo junino de santo antônio, são joão e são pedro. Ali expandi o ano que enfim se movimentava pra fora, pro lado de lá, no colo da casa de João.
Curei a terra no chão de sua casa, na casa de seu corpo. Tirei as sementes das mãos, pus na janela com o sol, para secá-las, e me adentrei nas quatro paredes. Sarei a insônia e fechei a ferida aberta pelo sal. Dormi, deixando um pouco de me perceber, para que aquele fluxo me levasse, sem pensar nem narrar nada. Foi a partir dali que entrei em ação. Na verdade, foi a partir dali que reconheci a ação, pois ela já havia começado.
Eu já estava no ciclo quando cheguei ali. Mas foi João quem me levou para sua casa, me tirou do mar, me pôs no chão e me deu um pouco de terra para que eu pudesse arrastar pé.
Para chegar em João criei rotas nos grandes e pequenos veículos de transporte, atalhos em becos e esquinas. E foi com ele que voltei a me aventurar no bonde. Subi, desci, andei, várias vezes, como num passo de dança nunca completo, pois nada daquilo se coreografava. Era impossível grafar o meu movimento com João.
Por isso, segui, distraída, passeando pelos caminhos cruzados das novas linhas em folhas e janelas, por texturas outras nas histórias dos intervalos do ponto.
Corria sangue novo nas veias da minha cidade. E eu começava pelo centro, que era a margem dela.

****

Eu queria ser que nem você, me disse, com seus olhos de inveja branca.
Somos iguais, Ceci, temos partes idênticas dentro de nós. Eu também rodo, rodo, rodo, até cair. Assim, apaixonada mente, como você. Só que agora, aqui, estou aprendendo a usar o bonde.

Deve ser o ciclo do retorno.